É vô, hoje faz uma semana que o senhor se foi. Tudo ficou vazio de repente, a casa ficou silenciosa e as lembranças começaram a pipocar. E eu aqui, vendo tudo de longe.
Ainda bem que tive tempo pra chegar né, vô. Pra te ver mais uma vez, aparentando a saúde e a garra que sempre teve, mas que esses últimos meses tiraram do senhor. Aquela boca torta, os braços gordinhos e toda a estrutura de um homem que viveu 71 anos apoiado na própria força. Tava tudo lá, meio que dizendo tchau.
É difícil, vô. Sei que já não dava mais e que viver deitado em uma cama sem nem poder comer era a última coisa que o senhor queria - imagina só, o senhor ficar sem comer! Mas mesmo tendo toda essa noção ainda não me acostumei (e acho que nunca vou) com a ideia de que não vou mais te ver sentado na varanda esperando a gente chegar. É complicado pensar que não vou mais sentir as suas mãos grossas fazendo massagem nos meus pés enquanto eu deito no sofá pra ver televisão, ou pior, não vai mais ter ninguém fazendo aquelas perguntas chatas sobre o Corinthians pro papai.
E o almoço de domingo então? Quem é que vai fazer um prato gigante só com coisas que não pode comer e encher um copo de refrigerante sabendo que não era diet? É vô, a teimosia e os resmungos vão fazer falta, acredite se quiser. Até mesmo as engasgadas com a boca cheia de farofa ficarão como uma boa memória de todos aqueles bons domingos.
Tento não ficar pensando nesses "nunca mais", sabe vô. Sei que o senhor ficaria mal em me ver assim. Por isso de todas as lembranças, escolhi uma que é só minha: aquele aniversário do Renan, que enquanto ele ganhava todos os presentes e eu ficava no canto só olhando, o senhor foi até a lojinha da esquina e comprou a praia da Barbie pra mim. E quando a vovó te deu uma bronca, falando que nem era meu aniversário, o senhor virou e disse que aquilo não era certo: "se um ganha, o outro ganha também, uai!". A primeira bicicleta, as bonecas que mais queria, as tardes mais gostosas naquele quintal cheio de árvores e comendo bolo quentinho. Só tive tudo isso por causa do senhor e da vovó.
Vô, o senhor pode ter certeza que eu vou sempre lembrar de tudo. Das histórias da época de policial, dos passeios de carro, das perguntas completamente sem sentido. Aquela mania de tratar a mim e ao Renan como se ainda tivéssemos 5 anos vai ficar sempre comigo, e sua imagem vai vir a minha mente todas as vezes que alguém vier fazendo uma piadinha sem graça. Espero que o senhor descanse como merece, e pode ficar tranquilo que a vovó vai ser muito bem cuidada aqui, por todos nós.
Bença vô. Me abençoa daí de cima.